quarta-feira, 29 de abril de 2009

Ser 8

Em uma esquina, oito homens de uniforme varrem o lixo da calçada. Eles não são varredores, apenas varrem. Parecem estar varrendo há muito tempo. Há trinta mil anos, exatamente. Eles são a mesma pessoa e o lixo é varrido às vezes com facilidade e às vezes com impossibilidade, ainda que ele nunca acabe. Não há começo, recomeço ou fim, apenas varrem naquele começo de manhã até a calçada ficar limpa, há 30 mil anos, exatamente. É o mais simples a fazer, pensa um deles, como os demais.

Em uma esquina, oito troncos estão em pé sobre a calçada. Eles não são o mesmo tronco, mas faziam parte da mesma árvore. Não sabem se ainda fazem, nem se representam apenas um ser, se são oito irmãos da mesma mãe ou simplesmente troncos respingados que vão virar cadeiras exatamente iguais. Nem sabem se são cadeiras em seus casulos temporários. A dúvida os abala, cada um a seu modo.

Em uma esquina, oito cartas de amor estão presas sobre a calçada. São cartas diferentes de páginas diferentes do mesmo caderno, escritas com a mesma caneta, molhadas com o mesmo perfume e lágrimas, e escritas para a mesma pessoa. A primeira leva esperança enquanto a última anuncia morte. As cartas se consideram únicas, ainda que saibam de sua interdependência. A mancha das lágrimas na tinta da caneta as distinguem, para elas, ainda que lágrimas de amor e tristeza sejam iguais.

Em uma esquina, oito apartamentos estão perfilados um em cima do outro. Eles não são nem sequer parecidos, ainda que sua planta seja igual. Cada um tem sua personalidade fajuta e não gosta de seus vizinhos diretos. São arrogantes, velhos e acidamente sarcásticos, pois assim é o prédio onde estão. Eles não sabem disso, não têm referência de sua unidade, nem do desprezo que os molda igualmente. Alguém sabe, e espera o momento certo da anunciação. Seus moradores estão morrendo. O momento é agora.

Em uma esquina, oito animais diferentes fazem o que se espera deles. Três carnívoros caçam uma paca. Esta tenta fugir e quase pisa em uma cobrinha. Um pássaro vermelho voa sobre eles, aproveitando a corrente de ar. Um pequeno caramujo observa o pássaro enquanto se refugia do caos bestial. O vírus no chiclete se cristaliza. A mesma alma habita os oito animais, já tendo perdido a esperança na evolução cósmica depois de seu fracasso milenar.

Em uma esquina, oito pâncreas estão na calçada. Eles vieram de pessoas diferentes, mas são iguais. Eram membros, membros de um corpo humano. Acham graça disso. Fazem piada sobre formam um novo clube, o clube dos pâncreas, onde todos voltariam a ser membros. Cada um adiciona seu toque de humor à situação. Todos acham muito engraçado e riem, soltando enzimas a esmo. Ao final da grande gargalhada, suspiram com alívio a liberdade de suas obrigações vitais e o encontro de outros como eles, afinal.

Em uma esquina, oito ventos rodopiam acima da calçada. Executam uma complexa e ininterrupta dança de poeira e folhas. Dançam com passos imprevisíveis e arriscados para nunca encarar o que não sabem. A dança lhes define como movimento e não apenas ar, poeira e folhas. Dançam entre si, e não sabem o que aconteceria se parassem. Mas estão tão cansados, e são tão iguais, que consideram se unir em um só redemoinho. Nunca o farão, por vaidade.

Em uma esquina, oito esquinas sujas conversam com o escritor. Sabem que são a mesma, mas não se importam, ao discutirem o valor da metalinguagem. Discordam entre si de sua relevância na história, argumentam a pobreza do uso desse artifício no fim e não entendem o fio narrativo que une os textos do grande autor. O grande autor ressalta com indignação assoberbada que só espera que os verdadeiros e versados leitores compartilhem da grandeza de sua obra, mas ressalta que as críticas, ainda que menores, das esquinas serão usadas no derradeiro parágrafo.

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