quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

O sono da razão produz monstros (capricho 43), de Francisco de Goya y Lucientes



Capricho n.º 43, "El sueño de la razón produce monstruos", 1797-1798
Gravura a água-forte e aquatinta, 21,6 x 15,2 cm

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Lusco-fusco

Um bando de cachorros, com focinhos baixos, rastejavam suas narinas em busca de restos. A marquise cansada ameaçava cair. Até quando? O carro parado. Mais nada parado. Os pedaços de jornal velho, o reflexo da grande poça d`água oval, os cachorros, a marquise. Mas os dois não viam além do vidro. Ignoravam o que passava lá fora. Os olhos muito próximos. Os queixos trêmulos. De maneira diferente mas ambos trêmulos. Ele, a mão direita na alavanca de freio, como que mantendo a âncora fincada mas com total controle da hora de zarpar. Ela com as pernas cruzadas. O sexo escondido e sepultado por baixo da saia azul.

-Não faça do tempo parte da sua desculpa por não viver.
-Não filosofa que isso me irrita.
-Não estou filosofando. Falo apenas o que você deveria fazer: admitir isso tudo.
-Não preciso de babados, floreios. Posso ser cru e verdadeiro.
-Não faz tanto tempo assim. E até agora nada.
-Não vejo em você nenhuma vontade em ver. Realmente enxergar.
-Quanta negativa! Não percebe que todas suas frases começam com "não".
-Não. Estava prestando atenção às suas.

A âncora erguida, de maneira brusca.
Latidos e gemidos. Os cachorros ao redor da lata virada. Um resto de carne putrefata e pequenos rosnares.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Zona Sul

“Meus amigos,
Não seremos nós os que mudaremos o mundo. Não. Somos apenas reféns do mundo. O mundo nos constrange diariamente. Não podemos ser fortes o suficiente para o mundo. Não... Não seremos nós a mudarmos este pobre mundo. Somos levados pelo mundo como areia ao vento, somos pequenos, somos fracos. Somos massa de manobra, somos os que não fazem. Somos, enfim, os que se contentam com um punhado de réis em troca de algum conforto. Somos os liderados. Somos os que não fazem diferença.”

- Mas como assim? Se tenho um senso crítico apurado, se sou um dos que não pára de contestar, de reclamar? Se tenho instrução e sou indignado?

- Pois eu que te ensinei a reclamar, mas te ensinei a reclamar sentado da tua poltrona, para não esqueceres que és um inútil de merda. Tua reclamação é paraplégica, como será inócua tua vida. Nem pensas em te levantar, porque teu medo de cair é maior que a tua razão, e aos poucos teu medo vai virando tua razão. E em breve tua razão não será mais do que teu próprio medo. E fui eu que te ensinei a ter medo. Medo de levantar, medo de andar. Medo de tudo.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Proverbios y Cantares - XXIX, de Antonio Machado

Proverbios y Cantares - XXIX

Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.

Antonio Machado (1875-1939). Poesías completas (1917).

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

sem título (ou Libertai vossas dores!)

Libertai vossas dores!
Vertei-as todas
de mortas cores
de dissabores
seus falsos risos
porque alívio
porque olvido

Libertai vossas dores!
Desgarrai-vos todos
desses horrores
e seus horrores
de falsos mitos
porque lascivos
porque duvido

... e porque somos amores!

Libertai vossas dores!
Lembrai-vos nada
do que já fôreis
e seus rumores
falsos motivos
seus falsos riscos
porque suplícios
porque temores

Libertai-vos todos
do que já fôreis
porque é preciso
porque acredito.
Libertai-vos das dores
porque é possível
porque é princípio...
Porque somos amores!

domingo, 3 de agosto de 2008

Repente

“Quatro pães franceses, um litro de leite, duzentos gramas de mussarela e duas bombas de chocolate”. A lista era curta e minha memória também, então tratava de repeti-la como a um mantra. Os outros do elevador me lançavam olhadelas curtas, de rabo de olho. Eu estaria repetindo os itens em voz alta ou seria minha fantasia de odalisca que chamava a atenção? Devia, ao menos, ter feito meu cavanhaque!
Saí do prédio pelos fundos, pra evitar o tumulto da rua principal. O bloco, a essa altura, já devia ter se esparramado pela Rua das Laranjeiras. Solange me pedira pra voltar logo com o lanche. A briga fora feia e a decisão de trocar a folia por uma tarde tranqüila, saíra seca de seus lábios roxos, acompanhada do adjetivo “sensato”. As lágrimas mancharam sua maquiagem de “Nega Maluca” e sua peruca afundou no aquário, assustando o dourado que não estava habituado à surpresas.
A chuva caía fina, desfocando formas e dando ar de sonho ao que se via. Piratas, bailarinas, malandros, elefantes, me esbarravam como que em desafio a participar daquilo. Tracei uma reta e apertei o passo em direção a pracinha. Lá acharia o pão quente, a tranqüilidade que não buscava e o resto da lista. Redondamente enganado! A praça era um circo e o palhaço, a odalisca barbada. Tentava manter a compostura mas os ingredientes que saciariam o ódio de Solange, teimavam em acompanhar os compassos marcados da marchinha. As duas bombas de chocolate logo se fantasiaram de refrão e fui cercado de sorrisos e braços abertos, que embalavam, juntos, a minha música. Bloco de repente.
A vendedora de cerveja, dever cumprido, deixou de lado seu isopor vazio e empunhando uma varinha de bambu com uma lata amassada na ponta, se fez porta-bandeira. Os passos mancos e os gestos curvos balançavam, vivos, seus seios fartos. De restos se fizeram instrumentos e os olhares, como apitos, conduziam solene a comitiva informal. Os gêmeos siameses pediram passagem e numa ginga mais brusca, costura rompida, brilharam em evoluções independentes e rebuscadas. As fadas gargalhavam, girando suas varinhas com graça. O médico acudiu a nadadora que parecia se afogar, inflando seus pulmões, e todos, partículas brilhantes, se deixavam levar pelo vento em pequenos redemoinhos coloridos.
Minha cabeça pesava teimosa para trás, como que buscando contente, ar novo no espaço aberto sobre mim. Abdução voluntária. Ouvi lembranças concretas, recobrei a postura e visualizei sua chegada. Ela vinha maior que ultimamente. Quase irreconhecível. Mancava por querer correr. Me aproximei. Seus lábios vermelhos se entreabririam, mudos. Sua peruca pingava, escorrendo nossa casa pela rua. O corpinho do dourado preso entre as mechas sintéticas.


- Não agüentei esperar. – ela gaguejou.
- Eu já iria voltar.
- Mesmo que sim, tive que vir.
- Fico feliz; acredite.
- Eu torcia por isso.

Retirei o peixinho frio de sua cabeleira. Ela, surpresa:

- Pobrezinho...
- Ele parece feliz.
- Não reparei. Tinha pressa.
- Deve ter vivido um pouco disso, por instantes.
- Quanto tempo um peixe sobrevive fora d`água?
- Se foram poucos segundos, foram os melhores de sua vida.

Suas mãos em minha nuca. Seu nariz tocando o meu. Me olhou com sobra de verdade:

- Do aquário... nos desfazemos?
- Concordo.
- Enterramos ele? – pegou o peixe de minhas mãos, com delicadeza.
- Muito melhor... ele entra no samba.
- Imortal...
- Na última estrofe, rimando com beijinho estalado.

Acomodou o pequeno cadáver no copo de cerveja já quente e, com respeito e pesar sinceros, elevou o túmulo provisório sobre a cabeça. O bloco reverenciou o que percebeu ser de suma importância pro momento, numa compaixão gratuita que pouco se pode imaginar por aí. E se permitiram dançar pra esquecer de alguma coisa que agora já mal lembravam.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Para Gandhi

Pela verdade.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Antes

-Eu gostaria de contar a história da vez em que encontrei o Saddam Hussein. Você se importa?
-Não.
-Então, eu vou contar. Nós temos bastante tempo mesmo.
-De fato.
-Eu sei que é meio ridículo isso. Sabe, esses encontros com vultos históricos que dão uma perspectiva mais humana através do olhar de alguém comum. Não que seja isso o que eu queira fazer.
-Óbvio.
-É só que eu lembrei de isso ontem quando eu estava vendo um filme sobre um judeu que ajuda Hitler a recuperar a auto-confiança e fazer aqueles discursos ardorosos. Aí o filme mostra Hitler cheio de defeitos humanos e como uma pessoa ridícula. Mas o que importa mesmo é um cara comum, um judeu, ainda por cima, encontrar Hitler. Tem aquele outro filme também do “Rei da Escócia” ou algo assim com um inglês...
-Escocês.
-É, que convive com um ditador africano e vai mostrando a relação dos dois e como vai tudo pros diabos.
-Eu já entendi.
-Pois então... Onde eu estava mesmo?
-Lugar nenhum. Nem começou.
-Pois bem. Eu encontrei Saddam Hussein antes da guerra do Golfo, a primeira, com o Bush pai. Eu era negociante de vinhos, você sabe. -Uh-hum.
-E me especializei em vinhos do Porto com o passar do tempo. Meu pai sendo português e tal, acho. Nem gostava tanto assim de licor, mas certas circunstâncias me levaram a virar uma certa sumidade no assunto. Pois então, eu estava no Oriente Médio, no Líbano, acho, e veio um convite para que eu fizesse uma visita a um dos maiores clientes da empresa de importação e exportação onde eu trabalhava. Era uma grande empresa em Bagdá. Depois de uns telefonemas burocráticos chatos... Bem, cortando em miúdos a empresa era governamental e, obviamente, de Saddam. Até aí nada, pois era só uma...
-É, nada.
-...
-Conta.
-Mas o sujeito da companhia me explicou que eu iria encontrar o próprio Saddam, que adorava vinhos do Porto, que queria conhecer todos os tipos, que queria tipo uma aula... Calma.
-Estou calmo.
-Certo... Fiquei reticente, pois sabia da fama de Saddam. Mas uns três minutos depois, aquilo virou uma excitação incontrolável e avisei ao iraquiano que iria no dia seguinte. E ele ficou feliz com isso.
-Olha, você não pode pular pra parte em que encontra o Saddam?
-Poder, posso. Mas é que como a gente tinha tanto tempo...
-Mas tempo e saco não são a mesma coisa.
-...
-Desculpe. Conte a parte do Saddam, que deve ser mais interessante.
-Posso só falar do que aconteceu na noite anterior ao encontro?
-Não sei, se for interessante ou relevante, pode.
-Talvez seja só pra mim... Mas é que na noite anterior houve uma orgia com diversas putas no lugar onde eu estava, um dos palacetes que ficavam em volta do palácio real. Orgia mesmo.
-Arrãm.
-Isso não te interessa, não é?
-Não muito. Nem um pouco, na verdade.
-A parte relevante é que, talvez levado pelos outros participantes, gente de toda parte do mundo, ocidentais, árabes, asiáticos, até judeus... Não pelos outros participantes, mas pela brutalidade deles com as mulheres, eu não conseguia parar de pensar no que havia feito na orgia durante o encontro com o Saddam. Entendeu?
-Claro.
-Mas eu não expliquei direito. Eu não pensava sobre meus atos, mas sim na naturalidade daquilo, daquela agressividade nata com as mulheres. Da sensação de poder absoluto que leva à brutalidade. E não só com prostitutas, como as daquela noite, mas com todas as mulheres e... Eu estou me fazendo entender?
-Não precisa. É tudo muito óbvio o que está dizendo, ainda que nada relevante. A não ser a parte que você pensa nisso enquanto está encontrando Saddam. Podemos voltar ao encontro?
-Claro, claro. Eu estou suando... Bom, depois disso, eu abri minha maleta com diversas amostras de vinhos do Porto, coloquei na gigantesca mesa...
-Por que você parou?
-É que eu lembrei de uma coisa interessante.
-Para mim ou para você?
-Não sei ao certo. Acho que só para mim.
-...
-A história está acabando, juro, falta pouco. É que isso foi tão impressionante, e eu queria falar disso pra alguém, antes que...
-Tudo bem, tudo bem. Calma. Não precisa ficar nervoso. Conte só mais essa passagem e continue até o fim.
-Obrigado. É que atrás da mesa havia uma parede de vidro, e atrás do vidro, um leão. Eu não havia visto antes porque ele estava deitado, mas quando me aproximei da mesa ele se levantou. Eu tomei um baita susto, claro. Olhei para Saddam, que apenas andava em minha direção, mas longe ainda. Voltei a olhar o leão enquanto colocava as amostras, as garrafinhas, na mesa. O leão me olhou por menos de cinco segundos e se deitou olhando para o nada. Ele parecia velho e cansado. Mal-tratado até, o que não fazia sentido. Continuei colocando as garrafas e reparei que além da parede de vidro e da jaula depois havia outras jaulas mais distantes. Com bichos maiores e menores em outras jaulas pequenas com paredes de vidro que deveriam dar para outros cômodos. Só identifiquei um babuíno, entre os outros bichos, antes de perceber a presença de Saddam atrás de mim. O leão então...
-Você notou como Saddam não participou de nada até agora. Não deu um pio? E a história é sobre seu encontro com ele, que levaria ao que me interessa, espero...
-Mas a história é minha! Ela é a minha percepção! Por que você riu?... Não interessam outros pontos de vista ou o que o Saddam estava pensando, fazendo ou falando, só se me interessar na narrativa...
-É claro, mas você...
-O que você quer afinal? O fim? É isso? Só isso? Eu fiquei esperando, esperando, esperando e quando posso contar a merda da história...
-Você não precisa se exaltar.
-Claro que preciso! Porra! Quer saber o que aconteceu? Quer? O Saddam pediu para eu beber uma dose do meu vinho do Porto preferido. Eu bebi e morri. Pronto. Fim. Satisfeito?
-Não muito, mas não é meu dever ficar. Apenas ouvir. E por isso me desculpo.
-Idiota...
-Não precisa chorar...Ou precisa. O que você acha que aconteceu?
-Sei lá, foda-se! Pouco importa. Se era um inimigo do Saddam querendo matá-lo, ou o próprio destilando seu sadismo comigo... Eu morri, vim pra cá, esperei sei lá quanto tempo e, quando posso contar uma história, você não consegue mostrar qualquer interesse que não o fim dela.
-Não lhe parece estranho que de todas as histórias que você poderia contar, qualquer história, você contou a história que me servia, que eu tinha que saber?
-Sim, muito estranho. Eu não sabia que você queria saber essa história, mas de certa forma fazia sentido você saber sobre ela.
-É a mesma coisa com todos. Algumas histórias são menores, outras maiores. Algumas com rodeios e floreios, outras direto ao fato final. Mas são todas a mesma história. E eu as ouço, todas. Por isso eu ri. Não havia expectativa de minha parte, eu sabia que conseguiria o que esperava, no fim. Mas me perco nos conversas, às vezes.
-Mas e quando acaba?
-O quê? A história?
-É.
-Acaba.
-E depois?
-Nada.
-...
-Próximo.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Por qué, de Elvio Romero, poeta paraguaio

Por qué

Por qué no habremos de querer nosotros
lo que nunca quisimos; por ejemplo, una casa
sobre el remanso de un río,
con camalotes en sus costados,
con sus ventanas en regocijo.

Por qué no habremos de escuchar nosotros
lo que la noche escucha; por ejemplo, una sombra
que nos sirva de abrigo,
que allí muera misteriosamente
asumiendo el color de sus dominios.

Por qué no habremos de pisar nosotros
lo que jamás pisamos; por ejemplo, un sendero
con olorosos racimos,
con una hoguera que allí se encienda,
con grandes lluvias que nunca vimos.

Por qué no habremos de sonar nosotros
con un eco que suene; por ejemplo, un murmullo
que tiemble en el sonido,
el que responda a las preguntas
que junto al fuego recogimos.

Y por qué no buscar siempre
lo que es parada en un camino,
lo que hay de otoño en un verano,
lo que hay de ardiente en lo más frío,
lo que es sonrojo en unos labios,
lo que es Recuerdo en el Olvido,
lo que es pregunta en la respuesta,
lo que es jadeo en un suspiro,
lo que es vital de esa alegría,
de esa tristeza en que vivimos.

Elvio Romero (1926-2004). De cara al corazón (1955).

Preconceito!


Inacreditável a capa do Diário Lance de hoje, com a manchete "Seleção Paraguaia" sobre uma foto do jogador Robinho caído de cara na grama em momento do jogo Paraguai 2x0 Brasil, ontem em Assunção. Patética e preconceituosa a associação que se faz aqui no Brasil de que tudo o que é proveniente daquele país é falso (como se também não fôssemos um paraíso da pirataria...) Outro exemplo desse viés xenófobo é a já popular expressão "cavalo paraguaio". Na boca do povo, é só mais uma piada infame. Mas na 1ª página de um jornal em letras garrafais é no mínimo IRRESPONSABILIDADE.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Um

Me vi só naquele lugar. O grande espelho refletia minha imagem perdida no auditório vazio. Cabelos vermelhos e grossos e sardas largas, pelo rosto. Na época do colégio me chamavam de irlandês. Minha barriga estufava meu paletó cinza e minha perna direita vibrava involuntariamente. Não me sentia tenso, pelo contrário, me sentia anestesiado. Assim que a palestra acabou todos sumiram, compromissados. Sorrisos pensados, apertos de mãos e narinas dilatadas. Eu não tinha hora; compromissos. Me deixei ficar. Queria ter ido mas demorei a reagir. Parecia um incêndio no hotel. Eu teria morrido queimado.
Foram três dias de workshop. O dinheiro mais mal gasto da minha vida. Indicação de um amigo de infância que não via há anos. Reencontrei-o no metrô. Vagão cheio, me levantei pra senhora lotada de bolsas tomar meu assento. Já estavam me olhando mal; eu não tive escolha. Busquei uma vaga na baliza, pra pendurar meu corpo cansado. Gustavo pendia na minha frente, cabelos bem cortados. Evitei cruzar olhares. Preguiça de reencontros. Ele estendeu a mão, “Não se lembra de mim?”. “Sim, como vai?”. Nos sentamos no bar claro da rua escura. Ele não gostou do lugar mas parecia feliz em me rever.

- Tem visto o Pinduca?
- Não.
- Que pena...

Seu queixo era pontudo e o ato de elevar as sobrancelhas a cada surpresa me irritava um pouco.

- Há quanto tempo desempregado?
- Quase três anos.
- Não acredito!

Ele bebia rápido, ansioso. Grandes goladas. Meu copo na metade e o seu já vazio.

- Vale a pena o investimento!
- Acho muito caro.
- Quando eu digo investimento é porque você vai recuperar esse dinheiro rapidamente – Ele insistiu.

Nos despedimos com um abraço desajeitado, roubado por Gustavo. “Vamos marcar mais vezes, hein!”. “Claro...”. Sofri em passos tronxos, por sete quarteirões, até minha casa. O corte da sola do pé devia ter aberto novamente. Sentia minha meia empapar. A pisada no caco de vidro do copo fino.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Impressões do díspar (Amazônia)

Como não falar de Manaus?
Como não falar do Negro,
sua imagem e semelhança?

Das cores do feio?
Da criança com a cobra,
Dos seus encontros?

O espontâneo.

Do que é profuso?
Do que era chuva
e o que era riso?

Como não falar da gente?
O Caboclo de igapó.
Velho forte, todos.
Gente de esperas, de água doce.
A sua grandeza.

Como não falar do úmido?
Da umidade que pesa?
Porque sim, a Amazônia é pesada.
Sensível aos ombros.
É para poucos.
Como se carregasse o mundo.
E talvez o carregue.
Equilibrando-o.

sábado, 19 de abril de 2008

Outdoor, de Christoph Ruckhäberle

Plakatwand, 2005
Óleo sobre tela, 250 x 340cm

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Descanso de prato

Não entornou porque quis.
Aconteceu.
Tudo levou mais tempo do que foi e, cansado, tentou retrucar sem voz.
Balbuciou o que mal refletiu e se viu nu; indefeso.
Levantou os olhos embaçados, quase tolos, e se cegou com o sol.
Todos punham mais força que o necessário na ação de estar ali.
Puxou o ar e foi espaço, além de tudo.
Móvel de sala de estar, rígido e discreto, com vivência secular.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Vagão

Ele acordou.
Passos tortos, molhou o rosto no rio.
Se viu.
Diferente do que pensava.
As nuvens cobriam o céu sem muito esforço.
Doses de nada.
Voltou pra barraca pra respirar.
E só.
Só respirou.
E pronto.
Cheio de mundo.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Minneapolis

Faz frio em Minneapolis.
Puta lugar gelado.
Frio da porra.
Janeiro, menos quinze... já fez menos quarenta e um.
Outros meses são melhores.
Hoje, penúltima data de fevereiro, menos três, neve fraca, sensação de menos dez.

Dia primeiro de agosto de dois mil e sete, a ponte I-trinta e cincoW sobre o Rio Mississipi desmoronou, matando pelo menos sete pessoas. Muitos feridos. Entre os veículos, um ônibus escolar. Nenhuma das crianças morreu.
Em agosto, a média é de vinte graus.
Bem melhor.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Paternidade

- E quem sois?
- O próprio demo esconjurado.
- Não creio. Sois tão somente um pobre desgraçado refém da má fortuna. Não sois o capeta. Não é o diabo quem se apresenta diante de mim. Só vejo um tolo em minha frente.
- Pois se sou Lúcifer desencarnado...
- Não passais de um néscio! Maldito néscio!
- Então observai...
E transformou a água em vinho, e multiplicou pães e peixes para provar que tratava-se do coisa-ruim ele mesmo.
- Não posso acreditar. Estais enganado e a ti continuarei a chamar de filho.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Aditivada

O bar estava mais cheio que de costume. Cleber queria a sua mesa de sempre mas um casal já a ocupava. O homem, olhos vermelhos e muito suado, lambia o pescoço da mulher. Ela parecia não gostar, mas estava cansada demais pra reagir. Ele teria que esperar que o casal fosse embora, ou se contentar com a mesa dentro do bar, que comprometia a sua visão. A poucos metros dali, ela trabalhava. O posto estava movimentado e ela parecia descansada de ontem. Se mexia com vigor e suas bochechas davam sinal de um corpo saudável.
O baixinho trouxe a cerveja da marca que ele sempre tomava. Tirou o abridor do bolso da camisa azul e sacou a chapinha com um som oco. Cleber tentara em casa tirar aquele som da garrafa de cerveja. Foram doze tentativas frustradas. Ficou embriagado e passou a desenhar com cabeças de fósforos em brasa, figuras eróticas nas velas dos largos castiçais da mesa da sala.
O baixinho estava sério. Devia ser devido ao grande movimento do bar. Já se sabia que os dez por cento não iam para seu bolso então quanto mais vazio, melhor o bar seria, pra ele. Para o Cleber também, que teria uma melhor visão do posto de gasolina. Os dois as vezes trocavam algumas palavras e o garçom já não confundia seu nome, como na nona vez em que Cleber entrou no Bar Pituca e fora chamado de Jorge. Ele não corrigira o atendente. Não gostava de seu verdadeiro nome e se interessou pela idéia de ter duas identidades. Mas o baixinho, de alguma maneira, resgatou seu nome legítimo e o usava antes de cada frase dirigida à ele.
O casal pediu a conta. Cleber seguiu o baixinho até a mesa na calçada. Eles desembolsaram algumas notas amassadas e deixaram o bar. Cleber se acomodou. Um carro preto entrou no posto e parou na bomba dela. Seu short era curtíssimo e tinha a cor desgastada de tantas lavagens. Isso excitava Cleber que pensava que por tanto uso, aquela roupa já trazia o cheiro dela impregnado. Cheiro dos seus fluidos.
O motorista entregou as chaves e meteu a cabeça pra fora do carro, pra vê-la se curvar levemente em direção a entrada do tanque, com a mangueira de gasolina na mão. Os números giravam borrados no contados. Cléber engoliu uns amendoins que uma menina largou em cima de sua mesa, com displicência. O motorista saiu do carro e se aproximou da moça que agora secava as gotas de gasolina que escorriam na lataria do carro. Talvez tivesse tirado o bico um segundo antes da bomba se desligar, automaticamente. Ele sorriu com um lado da boca e disse alguma coisa. Cleber adivinhava suas palavras. “Vazou, querida?”. Ela esticou a mão. “trinta e cinco reais”. Ele colocou uma nota em sua mão. Seria R$50? Ela se virou, com desprezo e entregou a nota pra sua colega, que lavava o vidro de um fusca, na bomba vizinha. O motorista voltou pro carro, já sem o mesmo sorriso e arrancou com violência, criando um som agudo do pneu em falso no asfalto liso. Alguns freqüentadores do bar interromperam suas conversas inúteis pra balbuciar queixas vazias em direção do carro que já dobrava a esquina seguinte. Cleber se negou a comprar o saco de amendoins. A menina recolheu o resto da amostra que deixara em sua mesa e evitou cruzar o olhar com o dele. “Pão duro!”.