sábado, 18 de setembro de 2010

Brasilis

Gregório esperava junto ao grande relógio. O sol lançando seus últimos raios antes da tempestade que se anunciava. Os olhos, quase totalmente cerrados, tentavam distinguir os grandes ponteiros que se misturavam aos traços das horas distorcidos pela luz. Sua fotofobia era notória. Em família todos riam de suas caretas quando dos almoços ao ar livre. Ele não sorria da limitação; lhe incomodava. Ele mal sorria de qualquer coisa, muito menos de não conseguir abrir bem os olhos nos dias luminosos. Mas a nuvem se avantajava sobre o Largo; sobre o Centro; sobre toda a cidade do Rio de Janeiro. Logo poderia decifrar as horas do antigo relógio sem grandes esforços de suas pálpebras cansadas. Talvez os pingos lubrificassem seus globos oculares e lhe revelassem que Astolfo estava mais do que atrasado.

O sujeito ele tinha visto três vezes. O encontro eles haviam firmado há dois dias, por telefone. Mal se conheciam pelas leis das relações sociais convencionais, mas isso não diminuía a importância do rever. Lacrada nas palmas das mãos direitas, no momento último da última despedida, uma jura firme de um quarto embate. Ele, o credor, Astolfo lhe devendo. O devido lhe fazendo falta numa dor aguda por detrás do queixo. Dessa vez não teriam prerrogativas. Tirasse ele a soberba que fosse do interior de seu chapéu de feltro cinza, ele exigiria a volta do que lhe fora subtraído.

Os do Largo em passos curtos; rápidos. Pareciam que parados cairiam uns nos outros como dominós fragilmente equilibrados. Os rostos diversos, franzidos; poucos camuflados pela sombra de um chapéu. De feltro cinza, nenhum. Até que por detrás de uma senhora bem larga, vestido azul de cor nova, brilhante, um homem comprido, ereto em curva, cabeça coberta. Astolfo era um homem daquele jeito. Ao menos parecido. Mesmo andar, feltro cinza. Bem poderia ser... o próprio!

- Astolfo. – chamou Gregório, dando a mão para um aceno e não um aperto.
- Gregório! – Astolfo tentando alcançar a mão nervosa pra logo desistir e num abano: – tardei mas cheguei.
- Trouxe?
- Claro!
- Cadê?

Meio passo pra trás, a perna esquerda à frente da direita, leve flexão dos joelhos, corpo pendendo pra frente, mãos à cabeça, chapéu na mão e sobre seus cabelos grisalhos: o pássaro. Faltavam-lhe algumas penas nas pontas das asas mas era o próprio: verde, azul e amarelo. Não poderia ser diferente: o bicho, num curto vôo, aterrissou no ombro direito de Gregório e beliscou sua orelha num cumprimento de amigos que não se vêem há longa data. Um reconforto já esquecido, daqueles da infância, percorreu-lhe dos pés à nuca, e com um carinho de ponta de dedo retribuiu o afeto que completou com um sussurro:

- Brasilis, saudade de você garoto!
- Grégo! – o papagaio devolveu em voz rouca.

Astolfo não parecia nada sensibilizado com o reencontro dos dois e logo quis tratar de datas e obrigações. Dizia por Suzana que exigia ver o bicho semana sim, semana não. Gregório, intimidado pela presença do motivo do litígio, argumentava, meio que pra dentro, que o papagaio foi um presente seu; afeto seu. Era ele quem cuidava, dava comida, conversava; mais do que com a própria mulher. Fora esse o estopim das brigas, das louças no chão, dos gritos no jantar, do desleixo da mulher em voltar pra casa, dos telefonemas gagos, da marca no pescoço, da mudez repentina dela. Logo viria dele:
- Eu exijo a verdade!
- É um homem do escritório.
- Eu o conheço?
- Não.

E lá estava ele, pela quarta vez, em frente ao sujeito que tantas vezes fantasiou por sobre sua esposa, enquanto em vão tentava passar à ferro quente suas camisas de trabalho. Viu quando um pingo grosso atingiu o nariz do “homem do escritório” para logo sentir uma gota descendo por sua própria testa. A multidão acelerada em cores escuras. Ambulantes embrulhando suas lanternas e poções milagrosas. O céu preto excluindo o sol à solidão dos poucos que voavam por sobre a tempestade.

- Como ficamos? – Astolfo segurando o chapéu dentro do paletó.
- Um outro dia decidimos. Essa chuva... – Gregório tentando cobrir o papagaio.
- Água! – Brasilis com o bico aberto e as penas grudadas umas nas outras.
- Semana que vem. Sem falta. – sentenciou Astolfo.
- Temos que descontar a demora na devolução. Pelo menos duas semanas.

Nesse momento uma ponta de desespero perpassou o olhar de Astolfo que voltou a pôr o chapéu. Apesar do feltro novo se encharcando, parecia querer esconder a raiz do que sentia e que teimava vir à tona. Gregório estranhava a insistência excessiva.

- Suzana não gostava nada do bichano. E agora isso!
- É que o Brasilis lá em casa é conversa pra certos momentos.
- Mas ela nunca foi de conversar com ele.

O silêncio. O olhar úmido, carente, para o ombro direito de Gregório. A confissão debaixo d’água. Só os três no descoberto. O pássaro metade do volume de quando seco. Gregório, se vendo sob o chapéu, apoiou a mão direita no ombro esquerdo de Astolfo e num sorriso melado de compreensão:

- Semana que vem. Sem falta.