
Óleo sobre tela, 100 x 170,2 cm
Viena, Österreichische Galerie, Belvedere
O velho tinha me falado para ocupar minha cabeça com qualquer coisa. Se tivesse a ver com a ação, pior. Mas era inevitável, dizia ele. O segredo era transformar esse pensamento em algo além, divagar mesmo, quase descontextualizar a idéia levando-a para longe do conceito original. Penso isso depois do processo mental ter se encerrado. Como a funcionalidade do procedimento do velho nada mais é que um ciclo de perda de tempo. Tempo que deve ser passado o mais rapidamente possível, pelo menos em minha cabeça. Sem questionamentos, sem pensamentos profundos ou indagações de última hora. Nem sequer uma busca de auto-afirmação que me relembre os motivos que me levaram a fazer isso. Nada que possa me fazer reconsiderar. Talvez o fato de eu estar pensando isso seja uma falha no processo mental que o velho me passou. Ou talvez esse questionamento tolo seja totalmente irrelevante e apenas mais uma divagação para passar o tempo e completar mais um inútil ciclo. É estranho como se pensa falando para alguém, como se meu corpo e meu cérebro ou alma fossem coisas diferentes. Isso deve ter a ver com cinema. Seria literatura, se eu tivesse lido mais. Mas minha referência é mesmo o cinema. Que é exatamente o assunto da divagação que se encerrou agora e que recomeça o ciclo. Mas será a mesma divagação? A anterior, que eu me lembre, era sobre...
(Cinema, morte, monumento, bomba, Pato Donald, McDonald’s, barcos gregos, Perseu...)
Ah, sobre a questão épica da minha vida, que explicava onde me encontro e coisa e tal, e por que eu nunca consegui pensar “menor”... Quase faço o sinal de aspas com as mãos na rua, ao pensar em “menor”... (Não devo parecer louco de maneira alguma, não aqui) Bem, de qualquer jeito a divagação anterior se encerrou numa ironia e é isso o que importa. Tudo bem que me sinto obrigado a outra vez esmiuçar tal ironia para que ela não me fuja no momento em que apenas vislumbrei-a. Nada como outro ciclo de perda de tempo. A ironia é que essa minha “epiques”, “epicidade”, essa minha característica épica, me aproxima do cinema americano. Nunca consegui entender como um filme chinês, francês ou iraniano possa retratar um cotidiano tão pequeno e encerrar uma história como se fosse mais um dia na vida da pessoa. Como? Como alguém se dispõe a escrever algo cujo mais importante acontecimento na história é um gatinho que morre, ou a perda de um sapato, ou uma viagem sem pé nem cabeça com personagens itinerantes e irrelevantes? Não há nada de errado com isso, veja bem. Eu adoro esses filmes. Mas talvez eu goste mesmo deles por ser algo tão distante do que sou. Como mostrar a vida de alguém por um período de tempo onde quase nada acontece e encerrar essa pequena amostra de maneira quase aleatória? Como se escreve tal roteiro? Você escreve sobre sua própria vida banal, ou sobre a banalidade de alguém que queira retratar ou pelo menos basear em várias banalidades e criar uma nova atmosfera banal? É possível criar banalidade enquanto processo mental, como se cria uma trama, por exemplo? Ou o cinema da banalidade é um exercício puro e simples de observação e sensibilidade de edição da vida real?
Realmente o processo do velho funciona. Funciona até quando há uma repetição quase perfeita do ciclo anterior. Não imagino quanto tempo tenha perdido nesses ciclos, mas foi o suficiente. Agora não há mais volta. Já acionei a bomba e tudo que me resta é rir da ironia. Talvez haja tempo para tentar redefinir a questão da ironia do épico hollywoodiano em contraste com o que sou e com o que estou fazendo agora, ao destruir algo tão importante para uma cultura que, de certa forma, modelou minhas ações, ainda que culpá-la por isso seja u... bum.
Se deu conta do erro tarde demais. Não que houvesse se arrependido, não era o caso. Apenas o por quê havia se perdido. Ao descobrir a verdade, contando o que aconteceu ao confidente de velha data que esperava fascinar, percebeu que tudo havia sido em vão. O que era para ser nunca houve. Foi um erro, uma conta errada praticamente, ainda que estivesse lidando com palavras e a interpretação delas. Fez o que tinha que fazer com a informação que tinha na hora, e nem pensou muito antes de colocar em prática o que planejou. Usou o que tinha à sua disposição. Tinha dentro de si a vontade de fazer afinal, realizar algo para ele e seu confidente. Desejava mostrar-se a par dele, um igual. Isso era algo que lhe afligia. Achou que agora tivesse conseguido isso, mas fracassou e isso ficou claro no silêncio sem graça que acompanhou a explicação de sua falha retumbante. E a conversa que seguiu o silêncio, quando seu confidente tentou convencê-lo de que de certa forma havia no mínimo uma ironia nisso tudo e que a simples tentantiva já era um feito marcante, só fez diminuí-lo frente a ele. Sua posição era ainda mais inferior, ou assim a sentia. Ainda assim, estranhamente, não se arrependeu. E mesmo que tentasse, não conseguiria.
A ironia? A piada estava morta, ainda que sem querer.
Ao sair da obra naquela noite, olhou para trás e pensou como tudo poderia ter sido diferente se não tivesse brigado com seu pai por causa da cabra que se perdeu lá na fazendinha da família em sua cidade Natal. Brigar com o pai foi bobagem, a culpa era dele, e por mais que ele tentasse se convencer de que não havia feito nada errado e a cerca fosse velha e o pai bebesse demais todo dia, ele sabia que tinha sido o último a entrar no curralzinho naquele fim de tarde, para catar cogumelos. Negava até a alma que catasse cogumelos toda tarde, mas o fazia. Chegou a negar a si próprio e o efeito dos cogumelos o ajudava a recriar sua memória, mas não sua consciência. Algo de sua realidade reinventada sempre quebrava em sua mente no meio de qualquer dúvida ou embate e ele era obrigado a remendá-la com negação e ignorância. E talvez essa combinação de fatores o tenha levado à situação em que está agora. Mas é mais provável que não. Ele matou seu irmão por dinheiro, e só. O fato dele desejar sua cunhada pode ter facilitado sua tomada de decisão. O fato dele a ter estuprado e matado antes de ir para a obra hoje pode ter acelerado o processo. O fato do filho do dono da empreiteira encontrar alguma graça em colocar o corpo de seu irmão, ainda que não precisasse ser seu irmão, isso foi escolha dele, em pequenos pedaços no cimento da obra e pagar para isso foi o motivo único. Não a piada em si, que não importava, mas dinheiro para erguer sua casa. E que ele tenha recebido um extra pela gargalhada que causou ao filho do dono ao contar sobre a construção de sua casinha não lhe fazia diferença.
(Satisfazendo o tradutor piadista dentro de mim antes do deadline real. Sempre o filho do dono, nunca o dono...)