quarta-feira, 29 de abril de 2009

Cabo

É a história que aconteceu do beijo morte que se viu passou depois durou a vida enquanto existiu que houve para quem não compreendeu nem nunca esqueceu.

Ele, longo rabo reluzente, veio da água.
Ela, espinhos afiados, da terra molhada.
Ele, cabeça de barracuda, andou pelo mar com a água nos joelhos.
Era grande e o mar baixo.
Ela, mãos de garras, saiu da poça de areia molhada da imensidão.
Era grande e a paisagem infinita.
Seus caminhos duraram três semanas, contados desde que foram visto pela primeira índia.
Apareceram do nada. Nada mar e nada terra molhada.
Ao fim das três semanas pararam.
Ele, escamas lisas azuis, no beira-mar.
Ela, pele cascuda laranja, na beira da lagoa.
Pareciam não poder se desconectar de seus ambientes úmidos, ainda que se olhassem com independência do real, como se nada mais houvesse.
Estavam a menos de 150 metros de distância, e entre eles passava uma vila hesitante e alongada entre o oceanos e a lagoa.
A vila, agora, se dividia em duas, pois ninguém ousava cruzar a linha de olhares dos dois visitantes.
Os dois ficaram assim por 12 semanas. Fazendo poucos movimentos, sem nunca perder a conexão dos olhos.
A vila se adaptou à vontade implícita deles e recuperou alguma normalidade, em sua divisão. A ausência de homens facilitava isso.
No octogésimo sexto dia, a chuva caiu e eles andaram.
Ele, pênis alaranjado, levantou e começou a andar em direção a Ela, vulva azulada, que andava em sua direção.
A vila parou na chuva.
Choveu por 2 dias. Ao final da chuva, estavam a 30 metros um do outro.
O sol ardeu e secou a terra em 8 horas. Estavam a 15 metros um do outro quando não podiam mais se mover. Caíram para frente na areia seca.
Suas cabeças paralelas no solo, o olhar incessante.
Ele, dentes enormes e afiados, e Ela, boca minúscula borbulhante, se beijaram, mortos.
O suspiro final de suas bocas foi uma torrente de vento que levantou todas as índias do vilarejo do chão, e as engravidou. Até as meninas.
6 semanas depois, na próxima chuva, deram à luz a pequenos bebês gelatinosos que escalaram engatinhando os pingos de chuva até as nuvens.
E a cada nova chuva recebiam com alegria seus filhos das nuvens na vila.
Até que eles não mais vieram, suas mães morreram e nunca mais se falou sobre isso.
Apenas na chuva da memória ocasional que sempre tarda a cair.

Mompós

Cortar o cabelo e esperar. Deitar na calçada e esperar. Largar a bicicleta pra lá e esperar. Olhar as formigas trabalhando e esperar. Esperar, esperar... e perceber que não está a esperar. Ficar, estar, ser, talvez, mas não mais esperar. Olhar, admirar, perceber, observar, torrar, abstrair, sentir... As motos no lugar das bicicletas, os olhares desconfiados em vez do reconforto, calor incessante onde deveria estar a brisa suave, o barulho ao invés do silêncio... Mas paz. Paz afinal. Paz no desleixo, na insensatez, no isolamento, no descaso, na entrega, no nada... Tudo acontece, menos aqui. Aqui não há nada. Ao meu redor as formigas trabalham incessantes, as motos passam zunindo, o sol arde impiedoso... Em meu leito sujo, nada.
Em retrospectiva, percebo: eu era Mompox. A utopia de Mompox que inventei que deveria ser, ou que havia sido, e assim acreditado. A Mompox da jornada infindável, das moçoilas nas cadeiras de balanço depois da aula, do suquinho de 10 centavos da minha infância, do cumprimento afetivo da vizinha... essa mesma Mompox que se apresentava a mim, na minha cara, mas que só se realizava através da minha percepção deslocada e pretensiosa, posteriormente. Tudo naquele momento bastava. Não havia um gringo esquisito estatelado na calçada da rua paralela olhando pro nada a fumar. Havia a paz que Mompox tinha esquecido, ainda que estivesse na minha frente. Por trás das motos, do sol, dos olhares e do ruído. Na frente do caminho lúdico, das cadeiras oscilantes, do líquido nostálgico e do carinho.
Mompox é apenas aquele momento, onde eu era.
Até que, finalmente!, chegou a cerveja que eu estava a esperar. E lembrei que estava esperando. A primeira de muitas...

Ser 8

Em uma esquina, oito homens de uniforme varrem o lixo da calçada. Eles não são varredores, apenas varrem. Parecem estar varrendo há muito tempo. Há trinta mil anos, exatamente. Eles são a mesma pessoa e o lixo é varrido às vezes com facilidade e às vezes com impossibilidade, ainda que ele nunca acabe. Não há começo, recomeço ou fim, apenas varrem naquele começo de manhã até a calçada ficar limpa, há 30 mil anos, exatamente. É o mais simples a fazer, pensa um deles, como os demais.

Em uma esquina, oito troncos estão em pé sobre a calçada. Eles não são o mesmo tronco, mas faziam parte da mesma árvore. Não sabem se ainda fazem, nem se representam apenas um ser, se são oito irmãos da mesma mãe ou simplesmente troncos respingados que vão virar cadeiras exatamente iguais. Nem sabem se são cadeiras em seus casulos temporários. A dúvida os abala, cada um a seu modo.

Em uma esquina, oito cartas de amor estão presas sobre a calçada. São cartas diferentes de páginas diferentes do mesmo caderno, escritas com a mesma caneta, molhadas com o mesmo perfume e lágrimas, e escritas para a mesma pessoa. A primeira leva esperança enquanto a última anuncia morte. As cartas se consideram únicas, ainda que saibam de sua interdependência. A mancha das lágrimas na tinta da caneta as distinguem, para elas, ainda que lágrimas de amor e tristeza sejam iguais.

Em uma esquina, oito apartamentos estão perfilados um em cima do outro. Eles não são nem sequer parecidos, ainda que sua planta seja igual. Cada um tem sua personalidade fajuta e não gosta de seus vizinhos diretos. São arrogantes, velhos e acidamente sarcásticos, pois assim é o prédio onde estão. Eles não sabem disso, não têm referência de sua unidade, nem do desprezo que os molda igualmente. Alguém sabe, e espera o momento certo da anunciação. Seus moradores estão morrendo. O momento é agora.

Em uma esquina, oito animais diferentes fazem o que se espera deles. Três carnívoros caçam uma paca. Esta tenta fugir e quase pisa em uma cobrinha. Um pássaro vermelho voa sobre eles, aproveitando a corrente de ar. Um pequeno caramujo observa o pássaro enquanto se refugia do caos bestial. O vírus no chiclete se cristaliza. A mesma alma habita os oito animais, já tendo perdido a esperança na evolução cósmica depois de seu fracasso milenar.

Em uma esquina, oito pâncreas estão na calçada. Eles vieram de pessoas diferentes, mas são iguais. Eram membros, membros de um corpo humano. Acham graça disso. Fazem piada sobre formam um novo clube, o clube dos pâncreas, onde todos voltariam a ser membros. Cada um adiciona seu toque de humor à situação. Todos acham muito engraçado e riem, soltando enzimas a esmo. Ao final da grande gargalhada, suspiram com alívio a liberdade de suas obrigações vitais e o encontro de outros como eles, afinal.

Em uma esquina, oito ventos rodopiam acima da calçada. Executam uma complexa e ininterrupta dança de poeira e folhas. Dançam com passos imprevisíveis e arriscados para nunca encarar o que não sabem. A dança lhes define como movimento e não apenas ar, poeira e folhas. Dançam entre si, e não sabem o que aconteceria se parassem. Mas estão tão cansados, e são tão iguais, que consideram se unir em um só redemoinho. Nunca o farão, por vaidade.

Em uma esquina, oito esquinas sujas conversam com o escritor. Sabem que são a mesma, mas não se importam, ao discutirem o valor da metalinguagem. Discordam entre si de sua relevância na história, argumentam a pobreza do uso desse artifício no fim e não entendem o fio narrativo que une os textos do grande autor. O grande autor ressalta com indignação assoberbada que só espera que os verdadeiros e versados leitores compartilhem da grandeza de sua obra, mas ressalta que as críticas, ainda que menores, das esquinas serão usadas no derradeiro parágrafo.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Mompox

Em Santa Cruz de Mompox, uma cadeira balançava ao vento. Na calçada de casa, uma velha pitava cigarrilha colombiana com gosto e fazia crer que toda aquela umidade era somente mais um de seus delírios. Como o peixe barrento que vivia no rio, como o cachorro que preferia um chute a ser acolhido... Passaram-se tantas alegrias nas lembranças da velha, que se pôs a sorrir em seu balanço. Um sorriso gostoso que crescia e crescia e crescia. E só parou súbito quando percebeu três bicicletas desnudas vindo em sua direção. Não entendeu a princípio: “Como pode isso, meu deus?” Fechou os olhos, abriu-os depois com um suspiro e um alívio; já não mais estavam ali aquelas que julgou como coisa assombrada. Deu outra pitada, dessa vez mais forte, sentiu o gosto do tabaco na base da língua e cuspiu. Nesse momento o vento parou. Pensou em olhar para o rio, mas teve preguiça de se virar naquela direção. O pescoço a desconfortava e já não arriscaria movimentos mais bruscos. Tragou da cigarrilha mais uma vez e repetiu a mesma operação anterior. Então, voltou aos sorrisos. Até cochilar na cadeira.

***

Sonhou com o neto que morava em Cartagena. E sonhou que, como ele, tinha 14 anos de idade. Brincavam juntos na rua que beirava o rio em frente. E olhou para sua casa, que ainda era a mesma há mais de 50 anos. Dentro da casa, o corredor estava tão escuro que bateu-lhe algum medo de avançar por ali. Ficou quieta na sala, de pé, com o sentimento da expectativa pelo eminente terror que viria dos quartos e do pátio interno. Buscou mais ar antes de se precipitar por esses lados. O ar veio quente. Desceu pelo peito como fumo. E se pôs a tossir...

***

Agora chovia fino e a velha quis entrar em casa. Estava cansada, procurou com os olhos uma das filhas: a mais velha continuava na mesma posição, mirando impassível o rio. Só deixou de encará-lo quando ouviu uns gritinhos do alto de uma das árvores. Olhou então para a mãe que suspirava baixo. Logo a mulher voltou-se novamente para o leito do rio e tentou refazer todos os seus pensamentos de antes dos gritos. A velha a seu lado voltou a cochilar.