terça-feira, 28 de outubro de 2008

Lusco-fusco

Um bando de cachorros, com focinhos baixos, rastejavam suas narinas em busca de restos. A marquise cansada ameaçava cair. Até quando? O carro parado. Mais nada parado. Os pedaços de jornal velho, o reflexo da grande poça d`água oval, os cachorros, a marquise. Mas os dois não viam além do vidro. Ignoravam o que passava lá fora. Os olhos muito próximos. Os queixos trêmulos. De maneira diferente mas ambos trêmulos. Ele, a mão direita na alavanca de freio, como que mantendo a âncora fincada mas com total controle da hora de zarpar. Ela com as pernas cruzadas. O sexo escondido e sepultado por baixo da saia azul.

-Não faça do tempo parte da sua desculpa por não viver.
-Não filosofa que isso me irrita.
-Não estou filosofando. Falo apenas o que você deveria fazer: admitir isso tudo.
-Não preciso de babados, floreios. Posso ser cru e verdadeiro.
-Não faz tanto tempo assim. E até agora nada.
-Não vejo em você nenhuma vontade em ver. Realmente enxergar.
-Quanta negativa! Não percebe que todas suas frases começam com "não".
-Não. Estava prestando atenção às suas.

A âncora erguida, de maneira brusca.
Latidos e gemidos. Os cachorros ao redor da lata virada. Um resto de carne putrefata e pequenos rosnares.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Zona Sul

“Meus amigos,
Não seremos nós os que mudaremos o mundo. Não. Somos apenas reféns do mundo. O mundo nos constrange diariamente. Não podemos ser fortes o suficiente para o mundo. Não... Não seremos nós a mudarmos este pobre mundo. Somos levados pelo mundo como areia ao vento, somos pequenos, somos fracos. Somos massa de manobra, somos os que não fazem. Somos, enfim, os que se contentam com um punhado de réis em troca de algum conforto. Somos os liderados. Somos os que não fazem diferença.”

- Mas como assim? Se tenho um senso crítico apurado, se sou um dos que não pára de contestar, de reclamar? Se tenho instrução e sou indignado?

- Pois eu que te ensinei a reclamar, mas te ensinei a reclamar sentado da tua poltrona, para não esqueceres que és um inútil de merda. Tua reclamação é paraplégica, como será inócua tua vida. Nem pensas em te levantar, porque teu medo de cair é maior que a tua razão, e aos poucos teu medo vai virando tua razão. E em breve tua razão não será mais do que teu próprio medo. E fui eu que te ensinei a ter medo. Medo de levantar, medo de andar. Medo de tudo.