domingo, 3 de agosto de 2008

Repente

“Quatro pães franceses, um litro de leite, duzentos gramas de mussarela e duas bombas de chocolate”. A lista era curta e minha memória também, então tratava de repeti-la como a um mantra. Os outros do elevador me lançavam olhadelas curtas, de rabo de olho. Eu estaria repetindo os itens em voz alta ou seria minha fantasia de odalisca que chamava a atenção? Devia, ao menos, ter feito meu cavanhaque!
Saí do prédio pelos fundos, pra evitar o tumulto da rua principal. O bloco, a essa altura, já devia ter se esparramado pela Rua das Laranjeiras. Solange me pedira pra voltar logo com o lanche. A briga fora feia e a decisão de trocar a folia por uma tarde tranqüila, saíra seca de seus lábios roxos, acompanhada do adjetivo “sensato”. As lágrimas mancharam sua maquiagem de “Nega Maluca” e sua peruca afundou no aquário, assustando o dourado que não estava habituado à surpresas.
A chuva caía fina, desfocando formas e dando ar de sonho ao que se via. Piratas, bailarinas, malandros, elefantes, me esbarravam como que em desafio a participar daquilo. Tracei uma reta e apertei o passo em direção a pracinha. Lá acharia o pão quente, a tranqüilidade que não buscava e o resto da lista. Redondamente enganado! A praça era um circo e o palhaço, a odalisca barbada. Tentava manter a compostura mas os ingredientes que saciariam o ódio de Solange, teimavam em acompanhar os compassos marcados da marchinha. As duas bombas de chocolate logo se fantasiaram de refrão e fui cercado de sorrisos e braços abertos, que embalavam, juntos, a minha música. Bloco de repente.
A vendedora de cerveja, dever cumprido, deixou de lado seu isopor vazio e empunhando uma varinha de bambu com uma lata amassada na ponta, se fez porta-bandeira. Os passos mancos e os gestos curvos balançavam, vivos, seus seios fartos. De restos se fizeram instrumentos e os olhares, como apitos, conduziam solene a comitiva informal. Os gêmeos siameses pediram passagem e numa ginga mais brusca, costura rompida, brilharam em evoluções independentes e rebuscadas. As fadas gargalhavam, girando suas varinhas com graça. O médico acudiu a nadadora que parecia se afogar, inflando seus pulmões, e todos, partículas brilhantes, se deixavam levar pelo vento em pequenos redemoinhos coloridos.
Minha cabeça pesava teimosa para trás, como que buscando contente, ar novo no espaço aberto sobre mim. Abdução voluntária. Ouvi lembranças concretas, recobrei a postura e visualizei sua chegada. Ela vinha maior que ultimamente. Quase irreconhecível. Mancava por querer correr. Me aproximei. Seus lábios vermelhos se entreabririam, mudos. Sua peruca pingava, escorrendo nossa casa pela rua. O corpinho do dourado preso entre as mechas sintéticas.


- Não agüentei esperar. – ela gaguejou.
- Eu já iria voltar.
- Mesmo que sim, tive que vir.
- Fico feliz; acredite.
- Eu torcia por isso.

Retirei o peixinho frio de sua cabeleira. Ela, surpresa:

- Pobrezinho...
- Ele parece feliz.
- Não reparei. Tinha pressa.
- Deve ter vivido um pouco disso, por instantes.
- Quanto tempo um peixe sobrevive fora d`água?
- Se foram poucos segundos, foram os melhores de sua vida.

Suas mãos em minha nuca. Seu nariz tocando o meu. Me olhou com sobra de verdade:

- Do aquário... nos desfazemos?
- Concordo.
- Enterramos ele? – pegou o peixe de minhas mãos, com delicadeza.
- Muito melhor... ele entra no samba.
- Imortal...
- Na última estrofe, rimando com beijinho estalado.

Acomodou o pequeno cadáver no copo de cerveja já quente e, com respeito e pesar sinceros, elevou o túmulo provisório sobre a cabeça. O bloco reverenciou o que percebeu ser de suma importância pro momento, numa compaixão gratuita que pouco se pode imaginar por aí. E se permitiram dançar pra esquecer de alguma coisa que agora já mal lembravam.