terça-feira, 24 de junho de 2008

Antes

-Eu gostaria de contar a história da vez em que encontrei o Saddam Hussein. Você se importa?
-Não.
-Então, eu vou contar. Nós temos bastante tempo mesmo.
-De fato.
-Eu sei que é meio ridículo isso. Sabe, esses encontros com vultos históricos que dão uma perspectiva mais humana através do olhar de alguém comum. Não que seja isso o que eu queira fazer.
-Óbvio.
-É só que eu lembrei de isso ontem quando eu estava vendo um filme sobre um judeu que ajuda Hitler a recuperar a auto-confiança e fazer aqueles discursos ardorosos. Aí o filme mostra Hitler cheio de defeitos humanos e como uma pessoa ridícula. Mas o que importa mesmo é um cara comum, um judeu, ainda por cima, encontrar Hitler. Tem aquele outro filme também do “Rei da Escócia” ou algo assim com um inglês...
-Escocês.
-É, que convive com um ditador africano e vai mostrando a relação dos dois e como vai tudo pros diabos.
-Eu já entendi.
-Pois então... Onde eu estava mesmo?
-Lugar nenhum. Nem começou.
-Pois bem. Eu encontrei Saddam Hussein antes da guerra do Golfo, a primeira, com o Bush pai. Eu era negociante de vinhos, você sabe. -Uh-hum.
-E me especializei em vinhos do Porto com o passar do tempo. Meu pai sendo português e tal, acho. Nem gostava tanto assim de licor, mas certas circunstâncias me levaram a virar uma certa sumidade no assunto. Pois então, eu estava no Oriente Médio, no Líbano, acho, e veio um convite para que eu fizesse uma visita a um dos maiores clientes da empresa de importação e exportação onde eu trabalhava. Era uma grande empresa em Bagdá. Depois de uns telefonemas burocráticos chatos... Bem, cortando em miúdos a empresa era governamental e, obviamente, de Saddam. Até aí nada, pois era só uma...
-É, nada.
-...
-Conta.
-Mas o sujeito da companhia me explicou que eu iria encontrar o próprio Saddam, que adorava vinhos do Porto, que queria conhecer todos os tipos, que queria tipo uma aula... Calma.
-Estou calmo.
-Certo... Fiquei reticente, pois sabia da fama de Saddam. Mas uns três minutos depois, aquilo virou uma excitação incontrolável e avisei ao iraquiano que iria no dia seguinte. E ele ficou feliz com isso.
-Olha, você não pode pular pra parte em que encontra o Saddam?
-Poder, posso. Mas é que como a gente tinha tanto tempo...
-Mas tempo e saco não são a mesma coisa.
-...
-Desculpe. Conte a parte do Saddam, que deve ser mais interessante.
-Posso só falar do que aconteceu na noite anterior ao encontro?
-Não sei, se for interessante ou relevante, pode.
-Talvez seja só pra mim... Mas é que na noite anterior houve uma orgia com diversas putas no lugar onde eu estava, um dos palacetes que ficavam em volta do palácio real. Orgia mesmo.
-Arrãm.
-Isso não te interessa, não é?
-Não muito. Nem um pouco, na verdade.
-A parte relevante é que, talvez levado pelos outros participantes, gente de toda parte do mundo, ocidentais, árabes, asiáticos, até judeus... Não pelos outros participantes, mas pela brutalidade deles com as mulheres, eu não conseguia parar de pensar no que havia feito na orgia durante o encontro com o Saddam. Entendeu?
-Claro.
-Mas eu não expliquei direito. Eu não pensava sobre meus atos, mas sim na naturalidade daquilo, daquela agressividade nata com as mulheres. Da sensação de poder absoluto que leva à brutalidade. E não só com prostitutas, como as daquela noite, mas com todas as mulheres e... Eu estou me fazendo entender?
-Não precisa. É tudo muito óbvio o que está dizendo, ainda que nada relevante. A não ser a parte que você pensa nisso enquanto está encontrando Saddam. Podemos voltar ao encontro?
-Claro, claro. Eu estou suando... Bom, depois disso, eu abri minha maleta com diversas amostras de vinhos do Porto, coloquei na gigantesca mesa...
-Por que você parou?
-É que eu lembrei de uma coisa interessante.
-Para mim ou para você?
-Não sei ao certo. Acho que só para mim.
-...
-A história está acabando, juro, falta pouco. É que isso foi tão impressionante, e eu queria falar disso pra alguém, antes que...
-Tudo bem, tudo bem. Calma. Não precisa ficar nervoso. Conte só mais essa passagem e continue até o fim.
-Obrigado. É que atrás da mesa havia uma parede de vidro, e atrás do vidro, um leão. Eu não havia visto antes porque ele estava deitado, mas quando me aproximei da mesa ele se levantou. Eu tomei um baita susto, claro. Olhei para Saddam, que apenas andava em minha direção, mas longe ainda. Voltei a olhar o leão enquanto colocava as amostras, as garrafinhas, na mesa. O leão me olhou por menos de cinco segundos e se deitou olhando para o nada. Ele parecia velho e cansado. Mal-tratado até, o que não fazia sentido. Continuei colocando as garrafas e reparei que além da parede de vidro e da jaula depois havia outras jaulas mais distantes. Com bichos maiores e menores em outras jaulas pequenas com paredes de vidro que deveriam dar para outros cômodos. Só identifiquei um babuíno, entre os outros bichos, antes de perceber a presença de Saddam atrás de mim. O leão então...
-Você notou como Saddam não participou de nada até agora. Não deu um pio? E a história é sobre seu encontro com ele, que levaria ao que me interessa, espero...
-Mas a história é minha! Ela é a minha percepção! Por que você riu?... Não interessam outros pontos de vista ou o que o Saddam estava pensando, fazendo ou falando, só se me interessar na narrativa...
-É claro, mas você...
-O que você quer afinal? O fim? É isso? Só isso? Eu fiquei esperando, esperando, esperando e quando posso contar a merda da história...
-Você não precisa se exaltar.
-Claro que preciso! Porra! Quer saber o que aconteceu? Quer? O Saddam pediu para eu beber uma dose do meu vinho do Porto preferido. Eu bebi e morri. Pronto. Fim. Satisfeito?
-Não muito, mas não é meu dever ficar. Apenas ouvir. E por isso me desculpo.
-Idiota...
-Não precisa chorar...Ou precisa. O que você acha que aconteceu?
-Sei lá, foda-se! Pouco importa. Se era um inimigo do Saddam querendo matá-lo, ou o próprio destilando seu sadismo comigo... Eu morri, vim pra cá, esperei sei lá quanto tempo e, quando posso contar uma história, você não consegue mostrar qualquer interesse que não o fim dela.
-Não lhe parece estranho que de todas as histórias que você poderia contar, qualquer história, você contou a história que me servia, que eu tinha que saber?
-Sim, muito estranho. Eu não sabia que você queria saber essa história, mas de certa forma fazia sentido você saber sobre ela.
-É a mesma coisa com todos. Algumas histórias são menores, outras maiores. Algumas com rodeios e floreios, outras direto ao fato final. Mas são todas a mesma história. E eu as ouço, todas. Por isso eu ri. Não havia expectativa de minha parte, eu sabia que conseguiria o que esperava, no fim. Mas me perco nos conversas, às vezes.
-Mas e quando acaba?
-O quê? A história?
-É.
-Acaba.
-E depois?
-Nada.
-...
-Próximo.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Por qué, de Elvio Romero, poeta paraguaio

Por qué

Por qué no habremos de querer nosotros
lo que nunca quisimos; por ejemplo, una casa
sobre el remanso de un río,
con camalotes en sus costados,
con sus ventanas en regocijo.

Por qué no habremos de escuchar nosotros
lo que la noche escucha; por ejemplo, una sombra
que nos sirva de abrigo,
que allí muera misteriosamente
asumiendo el color de sus dominios.

Por qué no habremos de pisar nosotros
lo que jamás pisamos; por ejemplo, un sendero
con olorosos racimos,
con una hoguera que allí se encienda,
con grandes lluvias que nunca vimos.

Por qué no habremos de sonar nosotros
con un eco que suene; por ejemplo, un murmullo
que tiemble en el sonido,
el que responda a las preguntas
que junto al fuego recogimos.

Y por qué no buscar siempre
lo que es parada en un camino,
lo que hay de otoño en un verano,
lo que hay de ardiente en lo más frío,
lo que es sonrojo en unos labios,
lo que es Recuerdo en el Olvido,
lo que es pregunta en la respuesta,
lo que es jadeo en un suspiro,
lo que es vital de esa alegría,
de esa tristeza en que vivimos.

Elvio Romero (1926-2004). De cara al corazón (1955).

Preconceito!


Inacreditável a capa do Diário Lance de hoje, com a manchete "Seleção Paraguaia" sobre uma foto do jogador Robinho caído de cara na grama em momento do jogo Paraguai 2x0 Brasil, ontem em Assunção. Patética e preconceituosa a associação que se faz aqui no Brasil de que tudo o que é proveniente daquele país é falso (como se também não fôssemos um paraíso da pirataria...) Outro exemplo desse viés xenófobo é a já popular expressão "cavalo paraguaio". Na boca do povo, é só mais uma piada infame. Mas na 1ª página de um jornal em letras garrafais é no mínimo IRRESPONSABILIDADE.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Um

Me vi só naquele lugar. O grande espelho refletia minha imagem perdida no auditório vazio. Cabelos vermelhos e grossos e sardas largas, pelo rosto. Na época do colégio me chamavam de irlandês. Minha barriga estufava meu paletó cinza e minha perna direita vibrava involuntariamente. Não me sentia tenso, pelo contrário, me sentia anestesiado. Assim que a palestra acabou todos sumiram, compromissados. Sorrisos pensados, apertos de mãos e narinas dilatadas. Eu não tinha hora; compromissos. Me deixei ficar. Queria ter ido mas demorei a reagir. Parecia um incêndio no hotel. Eu teria morrido queimado.
Foram três dias de workshop. O dinheiro mais mal gasto da minha vida. Indicação de um amigo de infância que não via há anos. Reencontrei-o no metrô. Vagão cheio, me levantei pra senhora lotada de bolsas tomar meu assento. Já estavam me olhando mal; eu não tive escolha. Busquei uma vaga na baliza, pra pendurar meu corpo cansado. Gustavo pendia na minha frente, cabelos bem cortados. Evitei cruzar olhares. Preguiça de reencontros. Ele estendeu a mão, “Não se lembra de mim?”. “Sim, como vai?”. Nos sentamos no bar claro da rua escura. Ele não gostou do lugar mas parecia feliz em me rever.

- Tem visto o Pinduca?
- Não.
- Que pena...

Seu queixo era pontudo e o ato de elevar as sobrancelhas a cada surpresa me irritava um pouco.

- Há quanto tempo desempregado?
- Quase três anos.
- Não acredito!

Ele bebia rápido, ansioso. Grandes goladas. Meu copo na metade e o seu já vazio.

- Vale a pena o investimento!
- Acho muito caro.
- Quando eu digo investimento é porque você vai recuperar esse dinheiro rapidamente – Ele insistiu.

Nos despedimos com um abraço desajeitado, roubado por Gustavo. “Vamos marcar mais vezes, hein!”. “Claro...”. Sofri em passos tronxos, por sete quarteirões, até minha casa. O corte da sola do pé devia ter aberto novamente. Sentia minha meia empapar. A pisada no caco de vidro do copo fino.